domingo, 14 de agosto de 2011

O Extermínio





Vida Urbana - Recife, 14 de agosto de 2011.
Por Fred Figueirôa 


   O caminho foi traçado. E não tem volta. A dura constatação abria o caderno especial O caminho sem volta publicado pelo Diario há exatamente um ano e revelava como toda a estrutura social (educação, trânsito, transporte e saúde) do país e, sobretudo do Nordeste, estava em colapso com o consumo descontrolado de motos. As imagens, os flagrantes, os relatos e as histórias causaram impacto. Os números, desespero. Uma afirmação era unânime entre médicos e gestores de hospitais: estavam diante do maior problema de saúde pública da região. Uma epidemia incontrolável.  

Imagem DP
A mesma constatação que abriu o caderno em 2010 cabe para esta nova reportagem, um ano depois. O destino está traçado e não permite volta. O Brasil escolheu o caminho errado. Entre o primeiro semestre de 2010 e o deste ano, o consumo de motos aumentou 18%. E o futuro assusta. Estima-se que em pouco mais de uma década o Brasil terá um trânsito similar ao asiático, com mais motos do que carros nas ruas. As consequências dessa transformação serão agravadas e cada vez mais sentidas na mobilidade das grandes cidades, na poluição e, pior, na perda de vidas. A epidemia se tornará extermínio.

A equipe de planejamento do Instituto de Pesquisa Aplicada (Ipea) fez um cálculo e chegou a uma sombria relação entre o crescimento da frota e o aumento do número de mortes. Para cada 7,6 milhões de novas motos nas ruas, mais 8 mil mortes de motociclistas. Os últimos dados do Ministério da Saúde, sobre o ano de 2009, revelam que a cada hora, morre um motociclista no país. São mais de 9 mil mortes por ano. Se nenhuma política pública conseguir inverter a tendência atual, daqui a dez anos, em 2021, 18 mil motociclistas perderão suas vidas. Durante a década serão mais de 140 mil mortes diretamente relacionadas ao uso de motocicletas. A maioria das vítimas serão homens jovens, no auge da idade produtiva.

Flávio Muniz da Silva trocou o carro por uma moto há pouco mais de um ano. “Tinha muito trabalho pegando gente que tivesse moto”, explicou sua mulher, Etiene Maria da Silva, 27. Flávio logo foi contratado por uma empresa de dedetização. Visitava quatro a cinco casas e empresas por dia. Na última quarta-feira, atendeu ao seu último cliente, uma funerária. Morreu logo depois, em um acidente de trânsito que envolveu um caminhão e mais duas motos. Os outros dois motociclistas sobreviveram. A funerária atendida por Flávio foi a mesma que levou seu caixão para o cemitério de Camaragibe. Flávio deixou quatro filhos, o mais novo de seis e o mais velho de 14 anos. 

“Não está havendo nenhum indicativo de que isso vai reduzir, mas de que vai piorar. Quanto mais aumenta a frota, mais mortes são geradas. E a frota está aumentando 14%, 15% ao ano. Como a taxa de mortes está sempre superior à da frota, se a quantidade de motos aumentar nesse ritmo, as mortes aumentarão 17%”, avaliou o engenheiro de transportes e técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea, Carlos Henrique Ribeiro de Carvalho. “Tudo indica que o percentual de mortes de motociclistas vai chegar a 40% do total de mortes por acidentes terrestres”, concluiu.

Para cada morte, 5 internações 

Em alguns segundos, Êudice Gomes da Rocha teve a vida transformada. Foi só o tempo de virar a cabeça para certificar o que o retrovisor mostrava. Quando voltou a olhar para a frente, se deparou um micro-ônibus. Estava perto demais. Era tarde demais. Êudice sobreviveu. Mas o impacto da batida tirou todo o movimento do lado direito do seu corpo. A recuperação virou seu maior objetivo. Seis meses depois, aos 34 anos e pai de três filhos, se esforça para retomar a rotina e conseguir dar um futuro melhor para as crianças. Com muita fisioterapia, já consegue andar com a ajuda de uma bengala. Mas ainda não voltou a escrever, o que adia seu maior sonho: estudar para prestar concursos públicos.  

Imagem DP

Não é à toa que a inversão do padrão de mobilidade brasileiro, com as motos assumindo a supremacia nas ruas e avenidas de grandes e médias cidades, preocupa tanto. Um estudo realizado em 2003 pelo Ipea e pela Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) mostrou que 6% a 7% dos acidentes envolvendo automóveis resultam em vítimas. Nos acidentes com motos, essa porporção varia entre 61% e 82%.

Na última sexta-feira, o chefe de gabinete do Ministério da Saúde, Mozart Sales, garantiu que o problema está na “ordem do dia” do MS, que firmou com o Ministério das Cidades o Pacto pela Redução de Acidentes no Trânsito e está aderindo ao Plano de Ação da Década de Segurança no Trânsito 2011 - 2020, lançado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O país que não ordenou a entrada das motos no seu território tenta, agora, minimizar um problema que já assumiu contornos assustadores.

Para cada morte provocada por um acidente de moto, cinco motociclistas são internados em estado grave em um hospital de alta complexidade, segundo a Sociedade Brasileira de Medicina de Tráfego. As vítimas dessa “carnificina”, superlotam as grandes emergências públicas. Até o Hospital Miguel Arraes, inaugurado no fim de 2009 em Paulista, Região Metropolitana do Recife, já sente o impacto dessa epidemia. Dos cerca de 360 pacientes do setor de ortopedia operados na unidade por mês, entre 60% e 70% são vítimas de acidentes de moto. Mas, no Recife, é o Hospital da Restauração, a maior emergência do Norte e Nordeste, que melhor sintetiza o perigo que as motos representam. Em uma década, entre os anos 2000 e 2010, 29.035 motociclistas foram internados só naquela unidade. 

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